O casal vem caminhando em minha direção. Eles são aposentados e devem estar casados há mais de trinta anos. O outro casal também está se aproximando, vão me ultrapassar em três, dois, um... A senhora passa com os olhos fixos nos amigos e abrindo um largo sorriso, seu marido vai atrás, acenando. Nós, eu, os quatro senhores e muitas outras pessoas, usam este belo parque para mantermos nossos corpos em bom estado.
Pois bem, os casais se encontram e trocam palavras animadas, cumprimentos e incentivos. Essa amizade é cortesia do parque que nos une. De tanto se encontrarem, desenvolveram o costume de beber água de coco depois da caminhada. Enquanto se hidratam, trocam figurinhas sobre os filhos, netos, a vida de aposentados. Quando acabam, voltam para suas rotinas mais felizes.
Há anos nos encontramos aqui, há anos tenho vontade de entrar na vida deles, não com violência ou estardalhaço. Quero apenas assistir o cotidiano comum, vê-los conversar, comer, fazer compras, brigar...
Um dia não agüentei, escolhi o casal que mais me encantava e ousei segui-los. Como imaginava, entraram em um mercado perto do parque. Estava certo também sobre a casa, simples, antiga e pequena. Casa de vó.
Extasiado, observava os movimentos do senhor para abrir o pesado cadeado, cada movimento fora bem treinado ao longo dos anos. Eles entraram, fecharam o portão e sumiram dentro da casa. Estava ficando atrasado para o trabalho, precisava ir.
Durante um tempo continuei indo lá, queria sentir aquela rotina, provar daquele cotidiano tão banal, tão humano. Uma noite tive sorte e consegui vê-los, de relance e por segundos, sentados no sofá, assistindo televisão. Dormi feliz.
Mas não é só dessa vida aposentada que vive minha curiosidade, outras pessoas no parque me atraíam. Meus olhos as buscavam, tentado extrair os detalhes, as histórias, as manias, para conhecer, para saber, sentir e viver um pouco uma vida diferente. Foi por causa dessas outras pessoas que não percebi.
Um dia, lá vinha o velho senhor. Sem sua esposa. Foi então que notei que há um mês ou mais, só o outro casal vinha caminhar. Que também não sabiam o que acontecera porque ao vê-lo, apertaram mais o passo que o de costume e me ultrapassaram em três, doi...
Fiquei aliviado, ela descobrira que tinha artrose e estava com uma fratura no fêmur, precisava operar e não podia mais fazer caminhas. Os amigos ficaram igualmente aliviados, desejaram melhoras e prometeram visitá-la em breve.
Algumas semanas depois, o senhor apareceu acompanhado por um homem de meia idade, seu filho. Minha curiosidade acendeu, senti que tinha algo errado.
Quando se encontraram no carrinho da água de coco, quase corri para chegar a tempo de acompanhar a conversa. Discretamente, encostei-me ao portão do parque, ficando um pouco atrás das cadeiras deles, mas com uma visão boa de suas expressões.
O homem explicava que se divorciara recentemente, não tinha motivo para morar sozinho, era melhor ter e fazer companhia. Olhou com ternura para seu pai. A senhorinha fez um comentário de aprovação e perguntou: ‘Como está sua mãe? Está animada pra cirurgia? Precisamos ir visitá-la, né bem?’Antes que seu marido terminasse o aceno afirmativo e dissesse qualquer outra coisa, o homem arregalou os olhos e virou-se: ‘Pai?!’
O aposentado olhava para o chão, não iria explicar. O filho virou-se para o casal que observava a cena com espanto. ‘Minha mãe faleceu... ’. O pai levantou-se e voltou para a pista, fui atrás dele.
Enquanto me esforçava para ficar próximo, minha mente vagava pela casa vazia do viúvo. Aquela casa antes simpática e convidativa, agora parecia mais um depósito torturante de lembranças, por todos os cantos havia pedaços, restos dos anos de convivência. Os móveis exalavam recordações, as paredes expunham a genealogia da família, dezenas de rostos sorridentes. A cozinha e o quarto eram os maiores vilões, neste ficavam as recordações mais concretas, as roupas, bijuterias, os sapatos e perfumes. Naquela ficavam as lembranças das refeições, comidas saborosas (ela cozinhava tão bem!), dos Natais e até das noites de insônia, quando o dinheiro estava mais apertado e ela aparecia no meio da madrugada para lhe fazer companhia.
De repente ele parou, com uma mão buscou apoio num poste, com a outra cobriu os olhos. Rubem Alves escreveu: ‘A saudade é a presença de uma ausência’. Naquele momento, a Ausência estava ali, tentando olhar em seus olhos.
Foi então que aconteceu.
Eu estava apoiado no poste, aquela dor era minha. As lágrimas, grossas e quentes, escorriam por meu rosto, pescoço e molhavam a cola da camiseta. A garganta apertada pedia: ‘Grita!’, mas eu só soluçava. No escuro dos meus olhos fechados, via nossa casa ocupada apenas por mim e pela Ausência. Ela passava os dias comigo, almoçando, sentada no sofá, a espreita no supermercado e dormindo, quieta, fria, de costas pra mim, no lado onde todos esses anos Ela dormira. A dor pesava, minhas pernas não suportaram mais, fui sentando, me encolhendo.
O filho apareceu e o abraçou. Eu voltei a ser eu. O casal de amigos também estava ali, apoiando, sem nada dizer. Havia uma ferida exposta na calçada, os caminhantes observavam,paravam e comentavam. Alivia assistir o drama alheio, no segundo seguinte ele acaba e a vida volta ao normal, lá no fundo todos os expectadores pensando: ‘Ainda bem que não é comigo’. Era comigo, eu era parte de tudo aquilo, eu era um pouco aquele aposentado, eu participara da vida de casado e de viúvo, eu era uma parte... A senhora amiga percebeu minha presença intrusa e se espantou com meu rosto molhado e meus olhos inchados, havia dor em meu semblante. Os olhos dela me perguntavam o que estava fazendo e eu queria responder, era a chance de fazer parte daquele grupo, de entrar de fato naquela vida.
‘Nada!’
Saí correndo, precisava trabalhar, ainda tinha que tomar banho.
Quando meu corpo disse chega, obedeci. Ofegante, admirava as ruas de meu bairro com um amor incrível, também sentia um enorme desejo de entrar em todas aquelas casas comuns, conhecer seus cheiros, seus fantasmas, seus móveis, sua vida.
Perto de meu prédio encontrei uma vizinha. Era uma moça de uns trinta anos, bonita, solteira, morava sozinha. Mas quase nunca ficava sozinha, sempre recebia visitas, fazia festas, jantares, lanches, chás. Tinha um jeito de viver que me encantava. Eu gostava de como ela se vestia, expressava bem sua personalidade vibrante. Também tinha um jeito delicado de se maquiar. Não precisava segui-la, sua casa era encostada na minha, podia ouvir facilmente o que se passava do outro lado, era um prato cheio. E naquele dia, ela me deu uma ótima notícia: ‘Hoje vou te incomodar, Jairo, minha melhor amiga voltou de viagem, vai ter uma comemoração lá em casa’.
Foi o suficiente.
Tomei banho animado, teria festa, precisava pensar em que roupa usar. Porém havia um peso em meu peito, a ausência de alguém estava presente, uma saudade, lembrança de uma vida passada.
Lídia,com ajuda da Marie
9 comentários:
o Blogger tem a opção de editar posts em html e normal se o html estiver selecionado o enter não funciona.
canto superior direito do quadro de texto
Valeu Chubs!
Muito bonito. Achei meio sem resolução, mas tbm acho que se tivesse uma resolução muito concreta ia ficar inorganico.
Como sempre gostei da universalidade conjunta com a pessoalidade, uma personagem com uma "rotina" tão estranha expressando sentimentos universais.
Ficou meio formal esse comentario O.o
nao funciona comigo nem quando eu escrevo no normal
blogger me odeia
Lhamo crítico de literatura ooh! rsrsrs
então Mari,tentei alucinadamente dos dois jeitos e não deu certo.Daí o Chu comentou e fui tentar de novo e deu certo(também estava logada com um perfil diferente),não sei se tem a ver.O Blogger é temperamental
por um pedido da Marie eu vim me pronunciar
eu não sei muito o que pensei do texto
sei que geralmente sou eu que sigo pessoas aleatórias, mas não gostaria de entrar na vida delas nem participar desse tipo de cosia, eu acho que o texto tem uma característica muito pessoal e da qual eu não compartilho totalmente, fujo da rotina na medida do possível, não gostaria de entrar na rotina de outra pessoa, afora isso acho que não tava no feeling do texto quando li, preciso escolher melhor as horas de entrar no VPMT, então acabei achando o texto pesado, o suficiente pra não sentir motivação de ler de novo xT
desculpa Lidinha, mas é como vi =T
espero pelo menos ter feito um comentário construtivo =]
Valeu Chubs,foi construtivo,é sempre bom ouvir várias opiniões,mesmo que não sejam elogios.E sim é um sentimento bem possoal meu (da Lídia)
eu tinha visto como uma aumentada, uma exagerada daquele sentimento comum de se admirar com pessoas distantes, mas que vemos com frequência e acabamos notando
gostei muito ^^
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