domingo, 23 de agosto de 2009

D. Maria

-Sinto em dizer, mas a senhora tem no máximo mais seis meses de vida. - Por um instante, lhe pareceu que a notícia não era pra ela, mas para um personagem da novela. Seu marido ficou pálido. Quarenta e um anos de casados e nunca tinham lembrado que um dia a morte os separaria. -Não tem como tratar doutor? -Infelizmente não, seu Antônio, o tumor está em uma região do cérebro que não posso operar. Dias depois, reuniram os filhos. Eles não se conformaram, decidiram levar D. Maria em outro médico. Outros médicos, mesma resposta. A casa se encheu de velhos amigos, vizinhos e parentes distantes. Todos contavam casos cabeludos, que costumavam acabar em mortes trágicas. As refeições, antes animadas, se tornaram silenciosas. Se ficasse alguém para comer, o assunto girava em torno da vontade de Deus e da tranquilidade, que segundo todos era essencial. Nesses momentos D. Maria apenas sorria e deixava o convidado pensar que a ajudara, mas tinha percebido desde o início que não importava o quanto a mensagem fosse bonita e verdadeira, não a acalmava. Ter um prazo para viver era horrível. Era domingo, os filhos jantaram com eles. A mais velha levou uma nova dieta que prometia ajudar a controlar o tumor. Os três estavam desesperados em busca de qualquer tratamento alternativo. Os esforços comoveram D. Maria, mas não acreditava que uma dieta fosse fazer milagres. Aquela foi a primeira noite, depois do diagnóstico, que não conseguia dormir. As duas da manhã desistiu, resolveu assistir televisão.Porém,no corredor algo chamou sua atenção.Era a foto do batizado de sua caçula.Para ela tinha sido ontem.Então passou para o próximo retrato e para o próximo. Quando se deu conta, eram cinco horas da manhã, estava sentada no tapete da sala, rodeada por álbuns. Tinha dado boas risadas, saboreado recordações e derramado lágrimas. Mas estava feliz, sua vida fora boa, muito bem aproveitada. Sentou-se em sua velha poltrona, de frente para a janela. O céu começava a clarear. Deixou o pensamento vagar por sua infância, adolescência.. casamento..filhos..netos..Adormeceu. Seu sonho misturava fatos presentes e passados. De repente ela estava diante do doutor Hélio:- A senhora tem seis meses. -Não, quero viver mais!-gritava ela desesperada. Estava deitada no caixão e seu marido estava fechando a tampa:- Não!Estou viva! Ele não a ouvia. Os conselhos ecoavam em seus ouvidos. Ela se debatia e gritava: NÃO!- a tampa bateu. Acordou apavorada, o coração batia acelerado. Estava viva. Percebeu que estava se deixando velar antes da hora. Estava com um tumor, não estava morta. Tinha que aproveitar o tempo que ainda tinha. Que sonho ainda não realizara?Lembrou-se que em sua lua-de-mel ela e o marido haviam ficado tão impressionados com a beleza de uma praia baiana que combinaram de ir viver lá, em uma cabana, quando se aposentassem. Decidiu que queria passar o resto de seus dias de frente para o mar. -Antônio! A princípio, ele achou que era loucura. Ela passava mal com certa freqüência, talvez lá não recebesse atendimento adequado. Por outro lado os filhos já estavam criados, já tinham suas famílias. Acabou concordando. O filho do meio ficou apreensivo, chegou a duvidar da sanidade dos pais, mas no fim entendeu que era até mais que um sonho, era uma motivação. -------------------- D. Maria viveu mais dois anos feliz e em paz. Seu Antônio continuou na Bahia e faleceu aos 102 anos, de velhice.

7 comentários:

nadamuitoriginal disse...

verídica?

Purple-Headed Tang Chasa disse...

O tipo de texto que dá empolgação de viver.

nadamuitoriginal disse...

será?

Anônimo disse...

legal!

lídia disse...

Não,mas queria que fosse,lembra que minha tia está com câncer?queria que ela e as irmãs(incluindo minha avó)vissem a situação desse jeito,acho que seria melhor =D

Purple-Headed Tang Chasa disse...

É doença desse nivel na familia é foda, mas quando encarada como no texto pode ser um mal que vem para o bem.

Priscila Pozzoli disse...

Gostei.
Sensações boas me ocorreram.
Gosto dos seus textos, Lídia.